agora o que resta? nos tiraram o abraço o ar a fuga se antes chorávamos os sem teto cobrindo agora além do choro da ausência do muro que protege Choramos a rua vetada nos tiraram as estradas a calçada a vizinhança a feira o mar
restam os devaneios nos roubaram os sussurros em meio a barulhos de concreto duro Aquele que nos carregava para nossas multidões Antes invisíveis – agora desejáveis Nas massas o barulho disforme que antes nos obrigava a lamber ouvidos em palavras gritadas cala agora desde dentro da nossa traquéia
resta ela A traquéia intubada
vetado o vento resta o ar mecânico e as torres caras do oxigênio comprado restam mãos cansadas que pulsam bravamente os corações desistentes
restam corações sem respiradores não foram sorteados na loteria dos vivos desmerecidos envelhecidos
nos tiraram avós e filhos Nos levaram os abraços e as flores no cemitério de partidas que já antes nos negavam
Choros? Já diziam feios os lutos? Fraquezas de quem vive Vetado o adeus Agora e lá ontem enterro do luto
lá e hoje resta a fraqueza resignada e a abafada perda a traiçoeira perseguição da palavra trocada se choraria a saudade de quem amo e foi resta engolir e ficar negação da dor moral do declínio
restam as fugas para dentro a deglutição obrigatória do intolerável
nos levaram as ruas da revolta
Roubados os narcisismos agora exaustivos
roubada a perspectiva a ilusão da certeza da planilha de meses vindouros
Restam memórias e pesadelos agora bem-vindos
Restam Os filtros do ar olhos o embaçado do vidro para ver o mundo inacessível e resta o silêncio
***
Flávia Andrade nasceu em São Paulo e é apaixonada pelas noites da cidade. Psicóloga, psicanalista e mestre em Filosofia de formação, sente-se atraída desde cedo por arte, teatro e poesia. Quer colocar em verso aquilo que não pode ser racionalizado pelas vias formais do conhecimento e da compreensão humana. É autora do livro “A cidade do tempo cão e outros poemas de fissuras”, lançado em 2020 pela Editora Patuá.
Epiglote (20/5/2020)
agora o que resta?
nos tiraram o abraço
o ar
a fuga
se antes chorávamos os sem teto cobrindo
agora
além do choro da ausência do muro que protege
Choramos a rua
vetada
nos tiraram as estradas a calçada a vizinhança a feira
o mar
restam os devaneios
nos roubaram os sussurros em meio a barulhos de concreto duro
Aquele que nos carregava para nossas multidões
Antes invisíveis – agora desejáveis
Nas massas
o barulho disforme que antes nos obrigava a lamber ouvidos em palavras gritadas
cala agora desde dentro da nossa traquéia
resta ela
A traquéia
intubada
vetado o vento
resta o ar mecânico e as torres caras do oxigênio comprado
restam mãos cansadas
que pulsam bravamente os corações desistentes
restam corações sem respiradores
não foram sorteados na loteria dos vivos
desmerecidos
envelhecidos
nos tiraram avós e filhos
Nos levaram os abraços e as flores no cemitério de partidas
que já antes nos negavam
Choros?
Já diziam feios
os lutos?
Fraquezas de quem vive
Vetado o adeus
Agora e lá ontem
enterro do luto
lá e hoje
resta
a fraqueza resignada e a abafada perda
a traiçoeira perseguição da palavra trocada
se choraria a saudade de quem amo e foi
resta engolir e ficar
negação da dor
moral do declínio
restam as fugas para dentro
a deglutição obrigatória
do intolerável
nos levaram as ruas da revolta
Roubados os narcisismos
agora exaustivos
roubada a perspectiva
a ilusão da certeza
da planilha de meses vindouros
Restam memórias e pesadelos
agora bem-vindos
Restam
Os filtros do ar
olhos
o embaçado do vidro para ver o mundo
inacessível
e resta
o silêncio
***
Flávia Andrade nasceu em São Paulo e é apaixonada pelas noites da cidade. Psicóloga, psicanalista e mestre em Filosofia de formação, sente-se atraída desde cedo por arte, teatro e poesia. Quer colocar em verso aquilo que não pode ser racionalizado pelas vias formais do conhecimento e da compreensão humana.
É autora do livro “A cidade do tempo cão e outros poemas de fissuras”, lançado em 2020 pela Editora Patuá.
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