antinotícia de jornal
1.
é triste os viadutos quando crescem a interromper a paisagem
mas mais tristes são os viadutos quando desabam a interromper o progresso
da ida à feira em busca de tomates mais baratos
– enormes, tóxicos
o progresso
de umas vidas anônimas que não interrompem
não interrompem
o tilintar dos copos e as pessoas na copa
– ‘agora sim vamos falar da copa’, jornal hoje
2.
nunca vi tantos fogos. hoje vai ter porre. e é triste, eu sei, a violência contra a mulher vai aos píncaros.
3.
são umetanto na terrinha. chove como na pastoral de manhã chuvosa na cidade alta, no capim macio, nesses lugares todos de nomes tão lindos, mãezinha
os lugares, os nomes, são as minhas metáforas -, esses nomes lindos de se estalar na boca feito farinha d’água, essa farinha cearense que é a primeira coisa que busco nesse frio de pés estrangeiros. olho a bananeira pequenininha sob a garoa com uma melancolia bonita, com um verde que se abre em mil matizes. e a ribeira é também um nome bonito, um nome de cidade que se ergue, que abriga amigos novos e velhos num teatro de bonecos, num prédio com piscina pras criancinhas, numa praça que tenha um nome de presidente americano, numa casa de arquitetos; a ribeira é uma casa incendiada e alagada prontinha pra o novo. a
ribeira é a coxa, os beiços vermelhos da menina; e é também esta terra do lado de lá que o atlântico me sopra, me sopra vontades, poemas e a ribeira toda numa minha poema.
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(mais uma poema sem título por falta de sentido)
na minha quebrada ninguém leu
a última lista
de poetas que marcaram época
sinto diante de tudo que:
minha história individual não importa
a história coletiva
é a história do menino de catorze anos
um corpo negro um corpo à margem
baleado pelas costas
tiros certeiros na cabeça
dados pela polícia e seu estado
são todos assassinos
eu olho para a minha história
plantações de café que plantei
museu do café onde trabalhei
terras improdutivas pelas quais lutei
eu olho para a história que estudei
para o curso de história
onde não tinham as disciplinas
história da ásia
história da áfrica
história indígena
história do povo
eu olho pra estes prédios
padres, faraó, sapa inca, cortéz, jfk, fhc, nguema
eu olho os quatro cantos de um planeta redondo
tiros tirania barbárie tiros
eu queria ser uma poema-bomba
e incendiar este auditório nesta noite
com cada um de vocês
que gritam lula-livre e cruzam a calçada
omissos demais
cúmplices demais
na minha quebrada ninguém leu
a última lista
de poetas que marcaram época
estavam ocupados
coitados
sendo mais pobres que eu
mais pobres que continuam sendo meus irmãos
– preso por tráfico
– foragido por receptação
estavam ocupadas as mães
lendo no obituário que hoje não
hoje não foi mais um filho meu
tentando não ser bicho
conseguir algum pra comer
fomos obrigadues a descer no seco goela a baixo
escritores brancos proprietários héteros
da parte baixa do país
não lembramos de nenhum
estamos fazendo nossa própria época
escrita a bila
escrita a sangue
‘querendo vocês ou não isto é literatura’
voando livre como um curió um carcará
incendiando tudo cuspindo no túmulo de vocês
***

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Nina Rizzi é escritora, tradutora, pesquisadora, editora e professora; promove laboratórios de escrita criativa com mulheres. autora de tambores pra n’zinga (multifoco, 2012), A Duração do Deserto (patuá, 2014), geografia dos ossos (douda correria, 2016), quando vieres ver um banzo cor de fogo (patuá, 2017) e sereia no copo d’água (jabuticaba, 2019). é editora das edições ellenismos e coedita a revista escamandro – poesia tradução crítica.
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