Noturno n. 4
À noite,
No descanso das injustiças e das fraquezas,
Eles decretam no palácio a tua próxima fome.
Quando amanhece, o sol não nos fala
Nele, uma cortina de 100 dólares ponta de estoque
Em nós, o medo e o mito do silêncio.
Bronze o dia as aflições pelo trabalho e pelo sono
E quando enfim madruga e a jornada de tantas horas parece que chega ao fim
Eles dizem que haverá mais
Que haverá mais porque é preciso cansaço para os nossos olhos
É preciso sangue
Para que não se possa meditar
Para que sigamos
Máquina aos moinhos
A moer tudo aquilo que somos, tudo aquilo que não podemos ser.
***
Lampejo
quando navego nos itens do supermercado
no afago de suas prateleiras
sinto como se a guerra fosse aqui
aquela grande guerra esperada pelos povos
onde cada um monta sua torre e arma aos inocentes
onde deus salvará os bons da escória
onde o bom sou eu e o mau, o outro –
esse monstro que deveríamos amar mas não podemos
; e não o fazemos em nome do pó das armas que nos protegem da mão do filho –
do filho do outro a nos pedir comida com os olhos
de água.
meu deus, por que não me abandonaste no ventre à míngua da mãe
que morreu de parto na última ceia?
(mulher que abortou 20 eus abençoados pelo livramento do existido
e que não teve pai, mas um falo numerado)
deus salve a américa
deus me salve de mim olhando o preço da azeitona
meu último luxo interior que não poderei levar desta vez
me prometendo levar da próxima se o açúcar baixar
mas ele não baixa, não é? ele não morre, ele é duro.
preciso mesmo reduzir o peso, diz a revista, a publicidade…
eu e minha voz interior nos dirigimos à fila
nos despedimos do sonho de comer
aquelas coisas que a última classe não deixa
e pagamos com 200 reais os cinco itens necessários à manutenção da existência na fábrica.
…meu sonho acaba…
como se não tivesse nascido
como se jamais eu houvesse pisado os pés no éden e na terra
***

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Clarissa Macedo (Salvador – BA), doutora em Literatura e Cultura, é escritora, revisora, professora e pesquisadora. Apresenta-se em eventos pelo Brasil e exterior. Integra coletâneas, revistas, blogs e sites. Publicou a plaquete O trem vermelho que partiu das cinzas (Pedra Palavra, 2014) e o livro Na pata do cavalo há sete abismos (Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia, 2014; em 2ª edição pela Penalux, 2017; e traduzido ao espanhol por Verónica Aranda, editorial Polibea, 2017). Integrou, em 2018, o Circuito de Escritores pelo Arte da Palavra, promovido pelo SESC. Lançará este ano o livro O nome do mapa e outros mitos de um tempo chamado aflição (poesia). Contato: clarissamonforte@gmail.com / clarissammacedo.blogspot.com
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